sexta-feira, 9 de novembro de 2012

O Processo de urbanização do Rio de Janeiro através do Caminho das Águas.


Baía de Guanabara, Rio de Janeiro.

Foi em 1º de janeiro do ano de 1502 que um navegante europeu adentrou pela primeira vez a enseada da Baía de Guanabara. Deparando-se com o exuberante visual das densas matas e dos paredões rochosos cariocas, pensou que a baía era, na verdade, um rio que desembocava no mar. Foi nomeada a enseada de Rio de Janeiro.
Cerca de um ano depois, numa expedição de Gonçalo Coelho ao Rio de Janeiro, alguns de seus tripulantes foram os primeiros a desembarcar no local que é hoje conhecido como a Praia do Flamengo. Situaram-se próximos a foz do rio, hoje conhecido como rio Carioca e construíram a primeira feitoria do Rio de Janeiro. A esta pequena habitação os tupinambás residentes na região denominaram Carioca. Nome que, em um processo de acomodação cultural, foi dado ao rio posteriormente.
Foz do Rio Carioca.
Vê-se desde este pequenino episódio que a história da cidade do Rio de Janeiro começa marcada pela geografia natural de seus rios e seus caminhos, determinados pelas fontes naturais de suas águas. E assim vai seguir a ocupação do território da Guanabara.
Aliás, a própria condição de baía foi fundamental para o desembarque do europeu no mar de águas calmas da cidade tupinambá. Sem essa condição primordial a província do Rio de Janeiro nunca chegaria a ter a importância fundamental que teve na história do Brasil.
Carta do Rio Antigo
Em 1530, nova expedição portuguesa ao Rio de Janeiro foi comandada por Martins de Souza, que desembarcou na foz do rio Carioca. Mais uma vez o rio Carioca se tornava um marco de referência no processo de acomodação dos estrangeiros navegantes nas águas do Rio de Janeiro.
E a ocupação da cidade se inicia por dois focos apartir de meados do século XVI, quando da fundação da cidade. Um deles está atrelado a foz do rio Carioca, provavelmente pela presença abundante de água boa e saudável. E o outro foco de ocupação está mais próximo de onde é hoje o bairro do Castelo e a Praça Mauá. A este foco atribui-se um carácter mais estratégico de segurança, já que naquela época o Rio sofria constantes invasões tanto francesas quanto tupinambás.
Porém, esta área de posição estratégica privilegiada na defesa da cidade contra as invasões, sofria por falta de água e de condições higiênicas de vida e de saúde. Em 1646 o pedreiro André Tavares foi contratado para construir um cano levando as águas da lagoa de Santo Antônio (atualmente Largo da Carioca) até a Praça XV. O traçado deu origem a rua do Cano, hoje nomeada de rua Sete de Setembro.
Mapa do Rio Carioca
Mas essa medida não foi de todo suficiente para abastecer com água os padres e marinheiros que aportavam, cada vez mais frequentes, na Baía de Guanabara. Ainda no final do século XVII se iniciaria uma das principais obras de abastecimento do centro da cidade e que seria responsável pelo desenvolvimento urbano da cidade do Rio de Janeiro. A construção do aqueduto que trazia água desde a nascente do rio Carioca passando por cima do morro do Desterro (atual bairro de Santa Tereza) e descendo sobre os Arcos da Lapa até desaguar no Largo da Carioca que na época ainda não tinha esse nome.

Arcos da Lapa
O aqueduto ficou pronto em 1723 e trouxe vida e transformação para a geografia da cidade.
As lagoas do centro da cidade, lagoa de Santo Antônio (que abrangia o terreno do Largo da Carioca até onde é hoje o teatro municipal) e lagoa do Boqueirão (localizada onde é hoje o Passeio Público) foram aterradas por questões de saúde. A cidade atravessava um surto de gripe e as lagoas que perderam sua função de abastecedoras fluviais se tornaram apenas focos de reprodução de mosquitos.
O rio Carioca ganha destaque e se torna o rio mais importante da cidade. O bairro do Cosme Velho e das Laranjeiras começa a surgir no entorno de suas margens. O morro de Santa Tereza que antes era esconderijo de negros fugidos começa a ser ocupado por casarios nobres. A rua do Lavradio em 1777 passa a ser uma das primeiras do centro a possuir estabelecimentos residenciais. Tudo isso reflexo do abastecimento de água que agora chegava até o centro da cidade.
A cidade continua a crescer no entorno das margens dos rios, ao longo das praias e na beira da baía de Guanabara. Paisagens da onde o Rio de Janeiro vai tomando suas formas. Podemos destacar algumas ruas como: a rua das Laranjeiras e a rua do Cosme Velho que seguem atualmente o traçado original do rio Carioca e outras, como a Praia do Flamengo, de Botafogo e de Copacabana, que seguem o contorno original das praias.
Largo da Carioca através dos séculos.
E mesmo ressaltada a importância da água e especialmente do rio Carioca, a medida que cresce a urbanização da cidade, cresce também a poluição e degradação das águas desse mesmo rio. Rio que deu o traçado de ruas e o formato de bairros, que recebeu o nome dado ao gentio nascido nessa terra e do principal largo comercial do centro da cidade. E que foi aos poucos se escondendo embaixo das ruas, sob o traçado metálico dos trilhos dos bondes. Que foi se transformando em escoadouro para o esgoto e se tornando fétido e poluído.
O rio Carioca hoje não abastece mais a cidade. Ele, aliás, só pode ser visto em poucos locais antes de virar esgoto e correr por uma tubulação subterrânea. Na mãe d'água, no bairro do Silvestre (local onde foi desviado e deu origem ao bairro de Santa Tereza). Passando por dentro da favela do Cerro Corá. No largo do Boticário. E no ponto final do ônibus que sobe o Cosme Velho. Daí em diante ele vira uma tubulação de esgoto que vai desembocar na estação de tratamento da praia do Flamengo onde despeja os dejetos das populações dos bairros das Laranjeiras, Cosme Velho, Flamengo, Largo do Machado e catete nas águas turvas da Baía de Guanabara.
O trajeto da água é realmente importante na história da vida Carioca. E a população parece não se dar conta disso. Nós somos feitos de água. E nela podemos ver o nosso reflexo.
Mas qual o reflexo que podemos ver em um rio de águas negras? O reflexo de uma civilização desastrada que sempre optou (e ainda opta) pelo desenvolvimento infreável ao invés do respeito a água, fonte de vida para a população. A Baía de Guanabara (do tupy Iguaá-Mbara, que quer dizer enseada do rio com o mar) é um reflexo do que somos nós. Fluminenses. Do latim flümem, que quer dizer rio.

Percebemos que a denominação "Fluminense" (nome dado a todo cidadão nascido no estado do Rio de Janeiro) carece também de uma atualização visto que, posteriormente à 'descoberta' do Rio de Janeiro, foi o observado que o rio, ao qual refere-se o nome da cidade, tratava-se na verdade de uma baía.
Procurando acobertar este erro que deu-se no momento de batismo da cidade, nomearam a então enseada de Baía da Guanabara. O que é um contrasenso já que o termo vem do tupy Iguaá-Mbara e significa "enseada do rio com o mar."

Erros de Português


"Partida de Estácio de Sá" da capitania de São
Vicente para combater os portugueses no Rio
de Janeiro em 1565.


"Cerca de oito dias antes da partida para a guerra, um navio francês tinha surgido a oito milhas dali, em um porto que os portugueses chamam Rio de Janeiro, e, na língua dos selvagens, Iteronne (Niterói)." Podemos perceber no relato de Hans Staden (Viagem ao Brasil, 1557, cap.XL) que o nome dado pelos Tupinambás a Baía de Guanabara foi dado a cidade que surgiu em uma das suas margens e chama-se atualmente Niterói. Verifica-se por aqui que o nome Iteronne é simples alteração de Iteron ou Iteró, que quer dizer "baía, enseada."
Segundo historiadores, quando Cristóvão Colombo saiu da Espanha com destino a Índia e chegou a América, enganou-se, chamando os filhos desta terra de índios. E o termo "índio" acabou com o tempo sendo adotado para designar todos os habitantes nativos da América.


Vemos que, a tradução desses pequenos erros históricos são cruciais para compreender o modo de vida segundo o qual a sociedade moderna vem se desenvolvendo e se re-inventando. O entendimento que se tem dos símbolos é fundamental para decidir as datas comemorativas, os rituais religiosos e as celebrações de um povo. O significado das palavras que se pronuncia são absolutamente fundamentais para a compreensão de mundo do indivíduo que as absorve.
Por isso, num levantamento etimológico, busquei o significado original de termos tupy-guarany que foram incorporados, de maneira singular, no vocabulário brasileiro.
Tentando elucidar paradigmas centrais do modo de ocupação portuguesa e o ritmo de vida que, posteriormente, assumiu a sociedade brasileira, destaco a tradução mítica de nosso título principal: Carioca. Nome dado pelos Tupinambás, naquela manhã de 1502, à primeira habitação do homem branco no Rio de Janeiro.
O significado tradicionalmente reconhecido pela língua portuguesa é o que simboliza Carioca como uma junção de dois termos. Cari- homem branco e Oca- casa, sendo o sentido geral –casa do homem branco.

Mas esse vocábulo interpretado pela visão Guarany tem mais profundidade. É, na verdade, parte de um grande mito que remonta a época das migrações indígenas pelo continente.
Há milênios os grupos tupi caminhavam pela América guiados por seus profetas Carai (ou Cari) em busca de Yv´y Marãe - a terra sem males -,um similar do paraíso na mitologia Guarany.
Percorreram, desde o interior da Amazônia até a costa sul do Brasil um caminho mítico denominado por eles Tape Aviru (caminho de gramado amassado), que seguia em direção ao Sol Nascente (Nhandé Rovái) e era guiado pelas estrelas da Via Láctea.
Quando chegaram a costa brasileira, e viram o mar, os tupi sabiam que haviam chegado ao paraíso, pois assim contavam as lendas antigas.
Existem, obviamente, diferentes interpretações para este mito. Mas, de um modo geral, o que se leva a crer é que os Tupis acreditavam que o Paraíso ficava atrás do oceano, onde morava o Sol e todos os seus antepassados. E onde só se podia chegar de maneira incorpórea. Através de viagens transcendentes do Espírito.
Quando os Europeus chegaram navegando sobre as águas, vindo de Nhande Rovái, os tupinambás, que habitavam o entorno da baía de Iterõe, chamaram-os de Caraí, os xamã-guerreiros, pois perceberam, os Deuses tinham chegado à Terra.
Compreende-se assim, um grande equívoco na interpretação dos Tupinambás em relação as intenções exploratórias dos navegantes Europeus. A denominação Carioca surgiu numa relação de respeito quase divinal do homem indígena pela morada que erguera o seu novo Caraí na beirada do Paraíso.
 Enquanto, o novo Caraí, embora admitisse ter chegado ao Paraíso, não estava nem um pouco interessado em respeitar as tradições  ou conquistar a amizade do povo Tupinambá.
É preciso, no entanto, consertar esses erros de interpretação da História. Buscar nos povos, e não mais apenas nos livros, os significados dessas milenares tradições perdidas a muitos anos. Valorizando as raízes do povo da Terra.
E, para isso, é preciso refazer o caminho de Tape Aviru ao contrário. Praticando o avesso da exploração colonialista européia. Na tentativa de compreender as práticas antigas, as lendas ancestrais e o modo de viver do povo daqui.

Mãe,
Yv´y Marãe
Quero te encontrar
Onde você está?
Terei de morrer
pra chegar,
No seu céu,
no seu mar?
E, sobre o véu,
o lugar
Onde poderei
erguer
minha Morada.
               
Laialaia laialaia (…)