segunda-feira, 4 de agosto de 2008

Escritor das folhas soltas

O selvagem tribal chama a atenção de seu amigo, não tão observador mas um pouco mais civilizado, um homem da aristocracia, com uma ligeira cotovelada e uma indicação que ele, informal, aponta com o beiço. O indígena chama a atenção de seu amigo, em meio a ventania que os assola naquele jardim de praça, sobre o homem num banco próximo que medita com olhos centrados no infinito enquanto parece distraído a todas as folhas de seu caderno que voam e se perdem pela praça. O homem apenas se mantém tranquilo, inabalável, indistinto sobre qualquer forma que a sua linhagem deveria representar. O selvagem surpreso, em muito até impressionado, pergunta ao aristocrata palavras que parecem estar rodopiando dentro da sua cabeça:
_É maluco, não é?!
O homem eriça as sombrancelhas de forma incitativa.
_É escritor.
O indígena faz que sim com a cabeça, talvez irresumível a poucos milhares de perguntas.
_E porque deixa voar todos os seus textos? _disse se sentindo atrevido mas considerando inevitável a pergunta_ Qual é o sentido de se escrever desse modo?
_Talvez seja apenas um artista. _respondeu o Lord em tom frio_ Seja um desses loucos visionários do mundo. Talvez tenha escrevido tanto que deixa suas folhas voarem para que se espalhem pela sociedade. Ou talvez germinem na terra e venham a se tornar uma planta. _disse insinuante.
O indígena olhava ainda hipnotizado para a informação que ia se perdendo no vento e nos cantos do parque. A todo momento novas folhas se soltavam do caderno e voavam para mais longe e com mais velocidade.
_Vamos ajudá-lo. _disse se levantando, talvez ainda desse tempo de correr e juntar todas as folhas, pensava.
_Deixe o artista criar. _falou o Lord barreirando-o com o braço_ Deixe a arte livre para criação. Não vê, ele escreve mais. Escreve novos. Deixe que os antigos se percam, afinal, não quer você também que alguém lhe aprisione.
O índio olhou-o sem entender. O homem aristocrata continuou se direcionando à criação.
_Talvez aquelas tenham sido palavras sofridas, miseráveis como o desamor. O criador entende bem da arte quando a faz, ele está vivo num mundo infinito. A própria vida teve muita arte para se criar, mas isso só porque não tinha ninguém que definisse o seu papel, o que deixou-a livre para o amor.
_Que pena! _exclamou_ se alguém tivesse juntado as folhas da vida, talvez hoje entendêssemos da criação. Talvez pudéssemos compreendê-la...
O Lord novamente eriçou o sombrolho.
_Talvez amigo... mas você conhece alguém que já tenha definido a arte. A arte pode ser estudada, mas não aprisionada como pretendem fazer alguns conceitos. E embora a vida seja arte também, ainda existem homens que insistem em aprisioná-la, e isso enfim é o que causa desamor. Já percebeu quanta arte há na natureza?
O selvagem balançou a cabeça positivamente.
_Então deixemos que aquele homem faça a arte com o auxílio do vento. É bom quando começamos algo que não sabemos onde vai parar. Tal é a arte em sua maravilha. Divina e talvez mais precisa, quando se trata de levar amor para os homens, não devemos nos reter em limites. Até a guerra em seu fervor tem também os seus benefícios. Algumas coisas tinham que ser mudadas, outras ainda terão. Além do mais... _calou-se o Lord nesse momento, se retendo numa longa pausa. O indígena instigado insistiu sobre o doutor.
_Além do mais o quê? Além do mais o quê?
O aristocrata falou com toda paciência apesar de tudo.
_Além do mais, catar suas folhas seria acabar com a nossa própria história. Ele é nosso artista, é nosso criador. _e olhando para a expressão longa de dúvida no rosto do indígena, o doutor ainda complementou_ Sim, ou acha que um Lord e um índio conversariam num banco de praça sobre uma ventania fria dessas. Somos também fictícios. E aquele homem cujas folhas voam é o nosso autor. Ele olha contra o vento porque mesmo se olhasse para a nossa direção ele não estaria nos vendo, estaria nos imaginando. Por isso, prefere se inspirar visionando a natureza...
De repente o selvagem pareceu inquieto. Olhou a sua volta e observou que não havia mais do que o escuro ao redor daquele jardim. Não existia nada daquilo, ele era mesmo apenas uma criação. E talvez fosse ou talvez não fosse nem independente. Talvez suas vontades fossem sentidas porque foram apenas decididas pelo criador. Ó, que grandes questões tinha ele agora sobre a liberdade da vida? Surgiam suas vontades pela lógica do amor e do medo, ou foste alguém que o manipulava feito marionetes que introjetou tantas questões nele? Ó meu Deus, era ele ele mesmo, ou um outro?
Diante do próprio criador, nada mais coerente do que obter dele a resposta. O índio então levantou-se decidido e a passos firmes foi caminhando em direção ao escritor das folhas soltas. Seu homem, artista e criador.
_Homem, revele-me a verdade, a luz!
Nisso o escritor lhe direcionou o rosto feliz e olhou-o quase como se pudesse vê-lo. Sorriu. Seus olhos brilhavam tanto como nunca vira outro igual. Levantou o braço tateando o vácuo e num gesto supremo de orgulho proclamou:
_Fim!
Nesse mesmo momento desapareceram todos, o homem, o jardim e o índio. Depois disso, restaram somente as folhas soltas.

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